Aos sete anos de idade, Marília teve que ajoelhar diante da cama da mãe para se despedir dela, pela última vez. A mãe que agonizava expressava um sorriso gentil e verdadeiro, num rosto pálido e carcomido pelo sofrimento da doença que a vinha maltratando por pouco mais de um ano. Marília ouvia distraídamente aos conselhos da mãe como se estes fossem os corriqueiros antes de ir para a escola, mas naquele dia a mãe os estava dando para vida.
- Filha, seja uma boa moça sempre. Seja humilde, mas não deixe que ninguém pise em você. Quero, onde eu estiver, estar orgulhosa da eterna criança que pus no mundo. Tu terás a cumplicidade do teu irmão e vocês serão sempre respeitosos um com o outro.
O irmão olhava a cena já com saudades daquela que ia. A menina ergueu-se, beijou os poucos cabelos da mãe, que cheiravam mal, e disse docemente "até o almoço, mamãe." A mãe riu e a abençoou.
Sempre que Marília precisava de um apoio, ela lembrava da bênção da sua mãe e logo nada temia. A menina, um dia, deixou as coisas de criança e se tornou mulher. Uma mulher de expressões tímidas, de olhar esperançoso e de palavras firmes. Já o irmão, sempre sério e calado, não conseguia expressar nobres sentimentos e ações de carinho para ela. Mas, numa comunhão calada, os dois entendiam o amor pelo olhar e pelos risos repentinos, que sumiam logo que ele percebia que estava saindo da seriedade. Na verdade, ele adorava a irmã mais do qualquer outra coisa, mas como tinha medo de errar na educação da menina deixada pela mãe, ele resolvera ser mais um pai rigoroso. Crescendo juntos, ele a estimulava para os estudos e para a literatura, com a esperança de um dia vê-la formada e, quem sabe, doutora (de sua própria vida).
Um belo dia, essa comunhão foi dispersada. Marília disse ao irmão que desejava estudar em outro estado, pelas oportunidades que poderia ter e que precisaria do seu apoio e da sua companhia. Ele, no entanto, disse que ainda estava cedo para sairem da cidade onde eles tinham crescido e que ela deveria permanecer lá até o momento que ele achasse oportuno ir embora. A menina decepcionada com o irmão determinou que já teria chegado a hora dela seguir a sua vida sozinha e que, se ele não a ajudasse, ela seguiria com a benção da mãe. O irmão sabedor das intenções e das ousadias da jovem, que puxara a determinação da matriarca, durante a noite, deixou um envelope com as suas economias sobre a mesa da cozinha. A menina que já havia preparado as suas coisas para ir embora, sem dar adeus ao irmão, se espantou ao ver o envelope sobre a mobília. Mas ela também conhecia o seu amado irmão e sabia que o mesmo arranjaria uma forma de ajudá-la. As economias dele não fariam falta a ele, pois, de fato, planejava mais tarde mudar de cidade com a irmã e se sustentar por um curto período de adaptação.
Após ter abandonado a casa onde nascera, Marília seguiu sem medo o seu caminho. Arranjou alguns trabalhos, muitos conhecidos e uma grande amiga. Uma amiga, que se afeiçoou ao jeito meigo e impávido, e a abrigou em seu apartamento. Marília, como estudou muito com o irmão, aprendeu a lecionar e, com esse ofício, conseguiu uns alunos para ensinar e garantir o sustento.
A mulher, gloriosa e persistentemente, obteve a sua formação, casou, mas nunca recebeu respostas às cartas que enviava ao irmão. Pensando que ele tivesse morrido, Marília passou a sofrer solitariamente com o ressentimento de tê-lo deixado sozinho. E, quando as suas filhas perguntavam sobre a sua família, ela dizia que a família que ela tinha alí tinha sido fruto de um sacrifício de uma família maior. As meninas não entendiam o quê isso significava e calavam.
Numa sexta-feira, que prometia chover, Marília resolveu ir à livraria mais próxima de sua casa colher entre as prateleiras algumas obras. Enquanto folheava alguns livros, à sua frente, um homem distintamente vestido estava sentado concentrado em sua leitura. Entre um gole e outro de café, o homem levantou o rosto e vidrou a vista para fora da livraria. Entre uma folha e outra do livro, a mulher levantou o rosto e vidrou a vista para o homem sentado. De repente, ela sentiu um frio na barriga e o livro caiu das suas mãos. O homem, ouvindo o barulho, olhou para a direção da mulher e levantou-se delicadamente caminhando até ela. Quando chegou mais perto, se agachou e pegou o livro, entregando a ela. As lágrimas escorreram pelo rosto de Marília, enquanto o homem sorrindo disse:
- Que bom que ainda perduras muito do que te ensinei. E eu te ensinei que a melhor coisa para se fazer, num dia de chuva, é procurar um bom livro para ler.
10 cousas:
Gostei do conto.....
Boas lições nunca são esquecidas ..........
[]s L.sakssida
Novo visual...
Mas a mesma qualidade. Um grande texto recheado de mensagens. Concordo com Lestat, ensinamentos corretos nunca são esquecidos.
Bonito texto, profundo mesmo !!
Me fez lembrar da famosa frase de Flaubert, que, nesse caso, seria:
"Marilia est moi!"
Mó legal seu blogzim, Luca !!
Tô aqui dando uma xeretada no seu mundo e volto mais vezes ..
Té loguinho !!
Nando
que texto lindo, amiga!
parabéns!
Luca, apesar de um final feliz, durante todo o texto, foi muito triste! nossa, realmente contagiante essa deprê que tu passou no texto!
Histórias simples, bem boladas, fáceis de ler e entender.
É sua mesmo?
Muito bonita, sério!
Ah, também adorei a imagem!
:D
beijO!
Espero que este conto tenha sido baseado em fatos reais e que seu Natal seja celebrado com sabor do reencontro, do perdão e de uma vida nova, e é claro, muita leitura.
Gostei mesmo do texto.
Aguardo o dia em que publicarás teu livro.
Bjs!
Eu amo as músicas do seu blog!
beijos, minha linda!!!!
K.
www.incompletudes.wordpress.com
A gente sabe quando uma coisa nos tira do chão para levar à Lua, quando começamos a sentir uma energia diferente, quando a gravidade ergue tudo que é superficial na pele e quando você não consegue tocar em nada concreto. São lições nas entrelinhas que sobem junto com a gente.
por "coincidência" acabei de postar um conto no meu blog. E por "coincidência", o tema é o mesmo: partidas e reencontros...
... eu quero ter a vida sempre assim, com você perto de mim até o apagar da velha chama...
estou começando achar que somos parecidas :)
um grande abraço para você, minha querida lunática.
- Sim, se tivermos bom-senso, nunca esquecemos bons ensinamentos.
- Nando, reapareça quando quiser. O mundo é nosso.
- Obrigada, amiga. _TAPCP_
- Sim, Mingá! É minha mesmo. E bem minha...
- Não te preocupa, Alberto. Quando eu for uma escritora famosa, não esquecerei de ti.
- Ai, que sensibilidade boa de incentivar, Gustavo. Adorei a sua visita.
- E, Ló (ó a intimidade)! Temos que tricotar. haushausha
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